P. Manuel Antunes
1918-1985
Entrei na Faculdade de Letras de Lisboa em 1966, para o curso de Filologia Românica. Nessa altura, a cadeira que mais temor provocava nos recém-chegados era «História da Cultura Clássica », a cargo do Padre Manuel Antunes, pela carga de erudição e conhecimento que implicava. As aulas teóricas da cadeira, sendo destinadas a todas as licenciaturas de Línguas e Literaturas, tinham de se realizar no Anfiteatro I, que enchia integralmente os quatrocentos lugares. Ele entrava, com uma figura pequena e franzina, e começava sem qualquer interrupção a sua matéria, que correspondia à ordem minuciosa e rígida de uma sebenta que se tornou um monumento ao saber da Antiguidade. O peso dessa matéria constrastava com a timidez as pessoa, que parecia não reparar naquela multidão que, durante hora e meia, ia enchendo de apontamentos os cadernos, mesmo que se soubesse que se podia encontrar tudo na sebenta. No entanto, podia haver sempre interpelações para enriquecer a matéria, e podia dar-se o caso de virem a sair nos testes e no exame. Lembro-me também da sua voz, que se impunha, mesmo saindo daquele corpo com hábito preto, que tinha uma austeridade que passámos a associar à posse do saber. No entanto, apesar de serem aulas que iam contra o que, hoje, se consideram ser todas as regras da comunicação, foi graças a esse homem que muitas gerações de estudantes ficaram a conhecer a filosofia e história antigas.A sua atitude reservada, que fazia com que se cruzasse connosco nos corredores como uma sombra, não permite que guarde dele recordações mais próximas, como sucede com outros professores da época; mas lembro-me de um brilho seco no seu rosto, quando falava, e da sua capacidade de dar vida ao que, nessa altura, nos parecia ser a mais árida das matérias.
Nuno Júdice
Homenagem-Memórias P. Manuel Antunes
Na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,no Curso de Filosofia, o Padre Manuel Antunes foi um dos Professores que prendia os alunos pela sua erudição e discrição. O Anfiteatro enchia-se para as aulas de História de Cultura Clássica. Éramos imensos e o silêncio impunha-se, de tal modo os seus comentários aos grandes pensadores da Antiguidade eram inteligentes e as suas análises rigorosas, mas sem o peso da erudição fastidiosa. Era sua assistente a Professora Mª Leonor Buesco, parecia apagar-se na leccionação da disciplina, segura e meticulosa, obrigava-nos a cotejar os textos, com o imenso amor que por eles tinha.Lembro-me da minha prova oral, naquele tempo pomposa. Qual o meu espanto, ao ouvir a pergunta :« A Senhora sabe a história da Bela Adormecida?» A partir daí surgiu um interessante questionário, a que fui respondendo, entre a perplexidade e nervosismo, aos vários simbolismos presentes na história infantil, que nada de infantil apresenta na perspectiva de uma inteligente sensibilidade. Estudei, li obras, o assunto foi para mim inesperado, até hoje guardo a lembrança, deste tema. Só mais tarde, li sobre o assunto, com calma e muita curiosidade, só depois compreendi a profundidade das questões.Prosseguiu a oral a Drª Maria Leonor Buesco , coube-me em sorte a Ilíade, (XVIII) – O escudo de Aquiles, os primeiros versos pareciam não ter fim, tantas eram as minúcias a que deveria ter respondido.Aprendi muito nestas aulas, aprendi a amar a Cultura Clássica e a compreende a Filosofia Antiga. Nunca esqueci a complementariedade entre a História da Cultura e a Filosofia, ainda hoje cultivo nas minhas aulas este modo de ensinar filosofia, reflexo desta experiência de ter sido aluna do Professor Manuel Antunes, figura marcante em quantas gerações de estudantes da Faculdade de Letras e na Cultura portuguesa.
Filomena Gamelas
Homenagem a um PROFESSOR
Pequeno, sereno, entrava no “palco” do anfiteatro 1, como se lá não estivesse ninguém. Começava a aula e se ouvia algum barulho quando citava, em grego latim ou alemão, ironizava: “pronunciei mal?” Abria frequentemente os braços e as mãos, como se fizesse, qual “ovo cósmico” “cindir em dois o belo e o brilhante”, tal como no mito órfico que evocava.
Por isso alguns lhe puseram a alcunha do “ovo cósmico”, analogia com a sua figura e o seu discurso, culto, fluente mas rigoroso e por vezes difícil para quem entra no mundo universitário pela primeira vez.
Guardo do Padre Antunes melhores recordações das conversas informais que mantive com ele, do que das horas de exame oral que me aterrorizavam. Ainda hoje não encontrei resposta para a pergunta: ”qual a fórmula da teoria das ideias no Fédon?”, única pergunta duma oral, a que, por mais que encontrasse respostas possíveis, nunca foi aquela que ele desejava. Claro... chumbei!
Encontrei-o no último ano em que deu aulas, voltei a ser sua aluna. Ainda brilhante, mas já muito diminuído fisicamente, espantou-me com a sua memória: “Que faz aqui? Esteve cá antes de 1966. Éramos muito exigentes nessa altura.” Lembrei-me logo da tal fórmula do Fédon...
Sei que quis ouvir ler passos de Nietzsche quando estava, para não sair mais, numa cama de hospital.
No dia em que morreu mandei encadernar a célebre “Sebenta” de História da Cultura Clássica. Foi o sinal da marca que me deixou. Foi a homenagem silenciosa que achei mais forte para lhe prestar.
Era um pequeno grande homem.
Maria do Carmo Themudo
Homenagem ao Padre Manuel Antunes
Do Padre Manuel Antunes guardo a imagem inesquecível da sua fortíssima presença nas aulas de Ontologia, num enorme anfiteatro meio vazio, donde estava ausente a multidão turbulenta das aulas de História da Cultura Clássica.
O Professor estava já muito debilitado fisicamente, e a sua figura frágil deslocava-se com alguma dificuldade junto às primeiras filas , em contraste com a vivacidade e a clareza luminosa do discurso em que pacientemente ia dando vida aos pensadores pré-socráticos e, a partir deles, suscitando nos nossos juvenis espíritos as inquietações quanto ao destino da Metafísica Ocidental.
O que nos impressionava era talvez a manifestação de confiança no juvenil auditório, que ele convocava a estar presente, sem paternalismo nem transigência , e a confrontar-se com as questões mais difíceis e mais perigosas, que tantas vezes o discurso pedagógico camufla e oculta, na sua afanosa preparação de exames e frequências. O que impressionava era a universalidade e a tolerância, que sempre associei ao fortíssimo legado da sua formação clássica, mas que mais tarde comecei também a associar ao seu outro legado da grande tradição pedagógica dos Jesuítas. O que impressionava era ainda e sobretudo a grandeza luminosa do espírito, afirmando-se miraculosamente contra a fragilidade dum corpo que caminhava inexoravelmente para a morte. O que impressiona, ainda hoje, é este testemunho vivo de imortalidade, que constitui o facto de , no meio de uma tal crise da Escola, ser ainda a sua imagem e o seu pensamento que se nos impõem como legado e chamamento a uma missão, a que outros pretendem tirar todo o sentido.
Maria Adelaide Pacheco
Padre MANUEL ANTUNES
(1918 – 1985)
«Que se pretende fazer do homem? É esta pergunta que se propõe responder a filosofia da educação. É esta pergunta que nas épocas de crise - sobretudo, numa época de crise com as dimensões da nossa – se torna árduo e difícil responder.» Educação e Sociedade, ( Ed.Sampedro, 1975 )